Tony Rocha (Foto: A Cidade)
A Viagem
Tony Rocha
Foi uma noite atípica.
Em sonho, Cláudio atravessou uma floresta repleta de escaravelhos esfumados, ameivas amalgamadas, sons indecifráveis e palavras estranhas. O ápice das excentricidades da viagem noturna ocorreu com o voo desenvolto e elegante de rinocerontes e hipopótamos. Depois tudo serenou, Cláudio flutuou sobre as águas tranqüilas de um grande rio até atingir a margem oposta. E quedou-se. Impossível dizer por quanto tempo repousou placidamente sobre a relva macia. O fato é que acordou com uma sensação inusitada.
Ocorreu-lhe então a idéia de simplesmente ficar parado; permanecendo na cama por alguns minutos, provavelmente tudo voltaria ao normal. Mas, ao cabo de um quarto de hora, nada mudou. Persistia a estranha sensação.
Ficou sentado na cama experimentando a leve sensação de planar entre nuvens. Mas era uma sensação vaga, imprecisa como um capulho de algodão que fora lançado pela catapulta do imponderável.
Por longo tempo entregou-se à reflexão. Quando a claridade do dia se fez total, abaixou os olhos para o leito amarfanhado. Correu a mão pelo lençol e, tomado por um sobressalto, percebeu que este sequer se moveu.
Num processo involuntário mergulhou no passado. Reviu as amoreiras dos campos de sua infância. Lembrou-se das águas límpidas das fontes, do cheiro das flores silvestres, das frutas do pomar dos avós... Foi inundado por lembranças, cheiros, gestos, formas, por tudo que vivera até ali.
E sacudiu de si mesmo a noite mal dormida. Tentou situar-se no momento presente; encontrar uma explicação lógica e plausível para aquilo tudo. Atribuiu o fenômeno à excitação nervosa, à cocaína ou coisa assim.
Ouviu o próprio pensamento sentenciando: “Todos estão à espera da nave que empreende a viagem, fora disso, tudo é especulação.”
Não podia ficar indefinidamente sentado na cama. Então caminhou – sem o menor esforço – até o banheiro. Como já estivesse imune a surpresas, não percebeu que se movimentava sem sentir nenhum peso, nem mesmo o do próprio corpo.
Tentou girar o registro para franquear a circulação de água ao chuveiro, mas a pequena peça não se moveu. Abortou o banho. O que estará acontecendo? Perguntou-se. Lembrou-se então que o lençol também não se movera quando o tocou.
Mirou-se no espelho e... Outra surpresa!
O vidro polido não refletia sua imagem. Via apenas uma silhueta difusa, um espectro, sombra de sombra, qualquer coisa, menos ele, Cláudio.
Pensou ter sido acometido por uma súbita cegueira. Restava saber se passageira ou permanente. Talvez uma súbita privação da visão que iria progredir, evoluir de parcial a total. Foi então que percebeu os azulejos refletidos no espelho, e com absoluta nitidez, em todos os detalhes. Como explicar tão absurda perspectiva?
Um pensamento lúgubre perpassou-lhe. Não, não era possível, absurdo demais pra ser verdade. Saiu do banheiro e, lentamente seguiu de volta ao quarto. No curto trajeto devaneava, às vezes vacilava, mas seguiu em frente. Parou na porta do quarto e, temeroso, mas, resoluto, olhou. Estremeceu. Deitado em sua cama, inerte, estava um homem. Reconheceu-se de imediato. Era seu próprio corpo estirado na cama
Comparou a vida a um texto enigmático e pensou nas palavras de Hamlet a Horácio: “Há mais mistérios do que pode supor nossa filosofia.”