A violência doméstica contra a mulher, infelizmente, ainda encontra respaldo em diversas esferas da sociedade, inclusive na religiosa. No Brasil, a fé tem sido, historicamente, instrumentalizada para sustentar estruturas patriarcais e justificar desigualdades de gênero. Nesse cenário, emerge um fenômeno alarmante: o machismo espiritualizado, em que ensinamentos religiosos são distorcidos para legitimar a dominação masculina e silenciar o sofrimento feminino. Por séculos, discursos religiosos reforçaram a ideia de que a mulher deve ocupar um lugar submisso dentro do lar e da sociedade. Textos sagrados foram frequentemente interpretados de forma seletiva para sustentar hierarquias de gênero, com afirmações como: “a mulher deve ser submissa ao homem”, “a esposa deve obedecer ao marido” ou “o homem é o cabeça da família”. Descontextualizadas de seus contextos históricos e culturais, essas ideias continuam sendo reproduzidas em púlpitos, aconselhamentos e orientações familiares. Na prática, muitas mulheres em situação de violência doméstica são orientadas a “orar mais”, “ter paciência” e “suportar com fé”, como se a responsabilidade pelo bem-estar da família fosse exclusivamente delas. Em vez de acolhimento e apoio, recebem culpa e silêncio. Dessa forma, a fé, que deveria ser um instrumento de libertação e dignidade, transforma-se em prisão emocional e espiritual. Esse tipo de machismo, travestido de espiritualidade, é um obstáculo grave à emancipação feminina. Ele se mantém por meio de ideários religiosos que naturalizam a violência como “correção divina” e veem a denúncia como rebeldia ou falta de fé. Em comunidades mais conservadoras, a mulher que denuncia pode ser desacreditada, excluída ou tratada como destruidora de lares. A cultura da violência é sustentada por medo, vergonha e distorções doutrinárias. Frases como “homem é assim mesmo” ou “ele está passando por uma fase difícil” colaboram para o apagamento da dor feminina. Ao justificar agressões com a suposta missão feminina de “preservar o lar”, impõe-se sobre as mulheres um fardo injusto e opressor. Contudo, há resistência. Um número crescente de teólogas, estudiosas e lideranças religiosas comprometidas com os direitos humanos tem proposto novas leituras dos textos sagrados. A partir de uma ética baseada na compaixão, na equidade e na justiça, essas vozes resgatam uma espiritualidade libertadora. Elas lembram que Jesus, por exemplo, nunca subjugou mulheres, pelo contrário, ele as acolheu, ouviu e valorizou como agentes essenciais de sua missão. A espiritualidade genuína não tolera violência. Ela reconhece o valor da dignidade humana e se recusa a pactuar com estruturas que oprimem. A superação da violência doméstica passa também por um processo de revisão crítica das práticas religiosas, com a formação de comunidades mais sensíveis ao sofrimento feminino e o compromisso de reeducar lideranças. É urgente afirmar, com coragem e clareza: violência não é vontade divina. O silêncio não é solução, e submissão não é sinônimo de amor. A espiritualidade que justifica o machismo precisa ser repensada, desconstruída e superada. A fé verdadeira é aquela que cura, acolhe, protege e liberta, nunca a que fere, oprime ou silencia.