A tomada da Rocinha, a maior favela da América Latina, por forças policiais, apesar de sinalizar o resgate do escopo da cidadania para uma comunidade de 70 mil habitantes, não afasta a sensação de que até mesmo eventos de alta significação no calendário cívico são usados como espetáculo midiático-político, coisa comum nestes tempos em que governantes procuram tirar proveito de vitórias sobre o mal. Todas as loas ao secretário de Segurança do Rio de Janeiro, o delegado federal José Mariano Beltrame, cujas atitudes e expressão parcimoniosa diferem do adjetivo grandiloquente de seus superiores, mesmo constatando-se que a anunciada “batalha da ocupação”, por dias seguidos, tenha ensejado a fuga da bandidagem que imperava na favela. Assim, o aparato de guerra, os blindados, o desfile de soldados com armamentos pesados e o arsenal apreendido entram na paisagem como a estética de apoio à semântica do “discurso da libertação” de uma população que, há décadas, era obrigada a conviver com gangues e drogas. Situação que, vale registrar, tinha o endosso de grupos policiais que hoje emergem como heróis.
A estratégia de ocupação das favelas cariocas para combate direto ao tráfico de drogas escancara uma verdade: a chave da política abre todas as portas. Do bem e do mal. É sabido que na década de 1980 (83-87), sob o governo de viés populista de Leonel Brizola, se desenvolveu um processo de favelização no Rio de Janeiro caracterizado pela proibição de deslocamento de famílias dos morros e cessão de espaços públicos para construções irregulares. Embalado em romantismo, Brizola acedeu ao apelo de comunidades que se queixavam da violência policial. Proibiu incursões das forças policiais nas favelas, o que acabou expandindo a criminalidade. Dizia-se que negociava o apoio de criminosos que atuavam como cabos eleitorais, dando-lhes, em retribuição, autonomia para fazer suas operações. Corria a versão de acordo pelo qual os bandidos podiam agir livremente em seus territórios, contanto que não descessem dos morros para a cidade. Agora, a decisão política é a de fazer valer a lei nos antros da bandidagem, a ação mais emblemática do atual governo do Rio e que redundará em ganhos políticos.
É cedo para antecipar os impactos da ocupação das favelas cariocas. A expulsão de máfias criminosas gera, num primeiro momento, descontração geral. As comunidades veem e sentem potentia, o poder físico do Estado, conceito que os antigos romanos distinguiam do poder legal, potestas, e do poder político, auctoritas. Passada a euforia, as populações passam a cobrar mais que força bruta. Ou seja, rompidos os paredões do medo, chega a vez das demandas essenciais a cargo do Estado. O ponto de partida é o resgate dos direitos civis, a partir do direito à propriedade (regularização fundiária), passando pelo acesso à Justiça (instâncias judiciárias como Juizados de Pequenas Causas), chegando aos serviços básicos - postos de saúde, saneamento básico, coleta de lixo, energia, comunicações, educação -, base do edifício da cidadania. Como se infere, a gestão passa a ser ferramenta central para o bem-estar comunitário. Só no Rio de Janeiro se contam 197 programas destinados às favelas, dado que mostra a dispersão e a ausência de prioridades e urgências. Sua integração resultaria em maior eficácia.
O planejamento, por sua vez, envolve decisões de natureza política: como restabelecer o Estado legal dentro de um espaço dominado pela barbárie? Por onde começar? Leis vigentes - que regulam as atividades comerciais, por exemplo - devem ser aplicadas com rigor nos territórios resgatados ou flexibilidade deve ser adotada, particularmente nos campos da burocracia e dos impostos? Sem atividades produtivas e comerciais que possam absorver razoável parcela da mão de obra local, serão abertas janelas da ilegalidade, dentre as quais está o tráfico de drogas, chegando-se, assim, ao círculo vicioso da corrupção. Eis aqui um aspecto nevrálgico da estratégia de reconquista de espaços dominados pela bandidagem: como eliminar os focos da corrupção endêmica? Como evitar corrupção no aparelho policial? Sabe-se da dificuldade de um soldado de primeira classe propiciar uma vida decente à sua família ganhando um soldo em torno de R$ 1.200. Encontra a solução nos trocados fazendo bicos, porta aberta para trafegar na ilegalidade. A corrupção no seio policial tem outras razões que não apenas parcos proventos. (Aliás, a PEC 300, que trata dos salários das polícias, seria um bom começo para a reestruturação da política de remuneração das forças policiais.) A renovação de quadros, ao lado de sólida formação na carreira e melhoria das condições de trabalho, reforçaria o desempenho cívico dos batalhões. Uma comunidade amparada pelo Estado, inserida no mercado de trabalho, mostrando jovens engajados em projetos educacionais, desvaneceria o ímpeto do crime.
Por último, o alerta: todo cuidado é pouco para evitar que a experiência do Rio de Janeiro no mundo das favelas seja contaminada pelo vírus do oportunismo político. Ela pode ser um exemplo a ser seguido em outras rocinhas da bandidagem. Aqui e alhures.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professsor titular da USP, é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato