Num lastimável cômodo horrendo de um cortiço, numa improvisada cama sobre caixotes forrados de papelão e velhos jornais, estendido como se moribundo estivesse, o velho João, de cor negra, de cabelos encaracolados e esbranquiçados com pinceladas do tempo, aguardava em absoluto silêncio seu derradeiro instante. Amigos ele não tinha. Quem o visitava eram os conhecidos de rua, aqueles que junto com ele mendigavam alimentos para serem degustados embaixo do viaduto. No seu quarto, além da cama onde se acomodava tinha do lado direito um criado sem verniz, sobre o qual restos de comida ainda continuavam expostos exalando um cheiro horrível no ambiente. A porta de entrada era de madeira já encarquilhada pelo tempo e rangia toda vez que entrava ou saía alguém em visita a João. As dobradiças que a segurava no velho batente estavam enferrujadas e cada vez que a porta era movimentada pelo entrar e sair dos visitantes o som emitido por elas era ensurdecedor e irritante. A expressão no rosto de João cada vez que a porta se movia para fora ou para dentro era de repugnância, dando a impressão que ele preferiria que ninguém o visitasse. Numa das visitas diárias o velho ancião benzedor, seu mais antigo companheiro de rua, trouxera algumas gotas de óleo comestível que ainda restava no fundo da lata, guardada numa das frestas do viaduto de seu refúgio e colocara cuidadosamente nas dobradiças da porta. A porta se calou. A dobradiça umedecida encerrou seu ciclo de reclames e o velho João pode viver o silêncio que há muito tempo rogava. A lição é simples e a reflexão é oportuna. Quantas e quantas vezes dobradiças imaginárias tumultuam os ambientes de casa, os ambientes do trabalho e tantos outros vividos pela sociedade! Quantas vezes faltam aos filhos o restinho do óleo do fundo da lata para melhor respeitarem seus pais! Quantas vezes faltam gotas de óleo aos pais para melhor entenderem a realidade dos filhos! Basta que todos tenham nas mãos gotas de compreensão, de perdão e de paciência para usá-las nas horas necessárias. São gotas de amor que abrem as portas da fraternidade, da esperança e da paz lubrificando as portas do ódio para que ele não sobreviva e nem tenha espaço para fazer das pessoas verdadeiros escravos. Não precisamos esperar que outros venham umedecer as dobradiças que rangem a nosso redor. Tenhamos a iniciativa de fazê-lo. É dever de cada um minimizar desconfortos, seja do semelhante ou de si mesmo. Não é necessário que tenhamos o poder de mando, basta que tenhamos o poder da graça, da vontade e da virtude. Gotas de sabedoria são necessárias para lubrificar o ruído desagradável da incompreensão. Se você pensa que nada pode fazer está enganado. Você pode tudo, desde que se proponha a isso. Somos todos iguais. Ninguém tem tão pouco que não possa repartir. Use o óleo que tens no suor das mãos, se outro não possuir, mas use com amor, ele lubrifica tanto quanto o do fundo da lata do velho benzedor.
Professor MSc. Manuel Ruiz Filho - Votuporanga - manuel-ruiz@uol.com.br