O carnaval chegou com suas alegorias e simbolismos. E trouxe consigo as tradicionais campanhas de orientação e esclarecimento. O chifre do diabo e as asas de anjo que procuram posicionar o preservativo nas categorias do mal e do bem, revelam mais que a intenção do poder público de fazer uma campanha nacional de prevenção contra a AIDS, que se expande entre os jovens. Expressam o reconhecimento de que o mal encontra, no país, condições propícias para se alastrar, em função do estado geral de desorganização, irresponsabilidade e desleixo, conseqüência da inação do poder do Estado em muitas áreas e também do conhecido espírito folgazão e displicente do brasileiro.
A perda de valores, o desmanche de virtudes clássicas – como o respeito, a honra, a ética, a solidariedade, o compromisso da palavra dada –, que se somam à corrupção e à impunidade, desestruturam o sistema normativo, conferindo ao desenho institucional um quadro de fragilidade e anomia. E quando o Estado invisível, presente no mando da criminalidade, se volta explicitamente contra o estado visível, que é o poder do Estado, a sensação é de que o Governo, mesmo sob novo comando, não consegue segurar as ondas de criminalidade.
Afora razões pontuais para explicar os problemas nacionais, há uma causa maior que está por trás da onda de banalização que o País vive: a cultura de irresponsabilidade. Em sua esteira, vicejam a falta de autoridade, a ausência de compromisso, o descaso, a falta de zelo para com a res publica. O exemplo vem de cima. Quando não há um sentido de autoridade, disciplina e obediência à lei, que possam servir de norte para a sociedade, o povo tende a assumir comportamentos miméticos e a pautar sua conduta ao sabor dos climas e ambientes anarquizados. Diante desses climas, a psicologia coletiva nacional, ao contrário da rigidez do caráter anglo-saxão, por exemplo, dá vazão às atitudes relaxadas e negligentes.
O embaixador J. O. de Meira Penna, em seu formidável livro Em berço esplêndido, fornece alguns traços pelos quais pode-se entender muita coisa do que está se passando. Reconhece ele que o brasileiro é, mais que Homo sapiens ou Homo faber, Homo ludens, com sua propensão para os jogos, a diversão, os brinquedos, a festa, a farra. Basta ver que os ambientes pesados dos velórios são, entre nós, bastante aliviados por festivais de piadas. Fazemos brincadeira com coisa séria e seriedade com coisas banais, típica atitude dos espíritos lúdicos.
O que é sério para o brasileiro? A administração pública? A educação? A política? A instituição militar? O respeito às tradições, o civismo? Apenas umas, mais que outras, são respeitadas. O brasileiro aprecia mesmo e leva mais a sério os folguedos, o futebol, a loteria. O jogo do bicho, por exemplo, ampara-se na regra apalavrada pelos cambistas. Pessoas de palavra. O carnaval é uma das coisas mais sérias do País, porque suas leis são imutáveis e seus eventos, previsíveis. Os mandatários já deixam de sê-lo, em função da torrente de escândalos e denúncias que enlameiam os atores políticos e respingam sobre as instituições que representam. Se o futebol está deixando de ser coisa séria, é porque a política se infiltra nos times e estádios. Eis a confusão que cerca o Grupo dos 13. O ensino, por sua vez, transforma-se em grande negócio. O nivelamento da qualidade se dá por baixo. A instituição policial está debilitada. Policiais se envolvem nos descaminhos da criminalidade. Vejam o caso do Rio de Janeiro. A cúpula da Polícia Civil acaba de ser flagrada em operações de corrupção. Os efetivos, desmotivados, deixam de cumprir a contento suas funções constitucionais. O civismo? Ora, não resiste a uma batucada de samba.
Se a via institucional está congestionada de deficiências, não é o povão que vai arrumar o conserto. A responsabilidade é dos governantes e das elites. Onde estão os frutos da política nacional de Segurança? Onde estão os carros baratos, as boas estradas, o trânsito que flui? Os projetos do PAC caminham a passos de tartaruga. As promessas acabam indo para a cesta da verborragia. Por estas plagas, o verbo no Brasil é usado a torto e a direito para explicar o inexplicável ou para designar coisas que não correspondem exatamente à designação.
Vejam essa interessante moldura colecionada pelo embaixador Penna: o Rio de Janeiro é uma baía; não existem amazonas no Amazonas; Petrolândia e Petrolina não têm uma gota de petróleo; não há um grande rio nem no Rio Grande do Norte nem no Rio Grande do Sul, que é, aliás, uma grande lagoa. Em qualquer lugar do nosso imenso território, poderemos distinguir expressões inadequadas. Até aí, tudo bem. Só não podemos admitir que os níveis de inadequação e impropriedade atinjam as esferas de atuação do poder público. A crise na área penitenciária está escancarada. O poder do Estado está na lona. O que fazer? Adiar as soluções, empurrar a crise com a barriga? Esperar que o carnaval ajude a empurrar a sujeira e as carências para baixo do tapete? Vale lembrar que o hábito de adiar e fazer rodeios é bem brasileiro.
Senhores governantes, depois do carnaval, mãos à obra. Não esperem que o maná caia dos Céus. Usem a criatividade. Exijam de suas equipes (renovadas) ação, energia, disposição, ânimo, engajamento, integração de propósitos. Controlem e cobrem resultados. O Brasil espera que Vossas Excelências cumpram o seu dever.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação