O meu Natal era marcado pela expectativa do Ano Novo. Se na casa da gente o Papai Noel era incerto, nas ruas, com a chegada do Ano Novo, era uma verdadeira colheita com as Boas Festas. Quando criança eu e meu irmão levantávamos na madrugadinha do Ano Novo com o picuá (sacola de pano grosso) no ombro. Havia, naquele tempo, uma crença de que “se o primeiro que lhe pedisse Boas Festas fosse homem”, o seu ano seria maravilhoso. Aqueles que pensavam assim, ofereciam uma “bonificação” maior e mais polpuda para os meninos. Por conta disso, havia até uma certa disputa da “molecada” que disparava o “Boas Festas” antes mesmo do sol apontar no horizonte. Isso tudo é balela, e tenho motivos para contradizer essa profecia, conforme descrevo hoje no desfecho deste artigo. Mas, não era apenas dinheiro que a gente recebia de Boas Festas. O picuá era carregado de doces e brinquedos. A meninada se entendia e um ensinava para o outro aonde estavam os doadores “mais generosos”. E já naquele tempo se evitava a casa de quem só dava balas, píper ou chita. Bala a gente recebia de troco quando ia fazer compras.
Nas ruas de Araçatuba, onde andei perambulando por algum tempo e desejando Boas Festas antes mesmo da idade escolar, tínhamos os pontos que rendiam os melhores presentes. Existiam pontos que a gente comparecia todo ano. Um desses, era a csa da dona Sebastiana, a mulher do prefeito. Ela era uma bondade, e no Ano Novo saía para a calçada da sua casa no amanhecer levando travessas de bolo. As suas filhas seguravam as assadeiras e ela própria ia cortando as fatias de acordo com o gosto da meninada. Havia opções como bolo de milho, de fubá, chocolate e outros paladares. A cada vez que ouvia Boas Festas de Ano Novo dona Sebastiana tascava uma fatia de bolo. Era uma para cada um. Mas, tinha alguns coleguinhas, mais espertos, comiam ali o seu pedaço, davam uma volta no quarteirão, e entravam na fila novamente, para experimentar um outro sabor. Com tanta criança, não dava para a dona Sebastiana memorizar quem já havia se servido. Mas, a sessão de bolo da dona Sebastiana acontecia até o meio-dia. Anos depois, já nas ruas de Votuporanga, e seguindo a mesma tradição, montamos aqui também a nossa “clientela” de Boas Festas. Um senhor, morador na Vila América, ficava no portão e tinha no bolso um pacote de dinheiro. Eram notas de 1 cruzeiro. A cada pedido ela tirava o pacote do bolso e sacava uma nota. Imagino, se fosse hoje correria o risco de ser assaltado. Esse tinha uma memória privilegiada. Ao contrário de dona Sebastiana, que não sabia quem já havia comido do seu bolo, este senhor (chamava-se Heitor) conhecia perfeitamente a quem já havia dado dinheiro. Ninguém conseguia receber duas vezes. Confesso que até depois de grande ainda lhe agradecia pelas notas recebidas na infância. Aliás, o tempo não apaga o reconhecimento a quem devemos gratidão. Um desses casos é o do “seo” Belmiro por haver protagonizado o meu mais triste 1º de janeiro. Ele era um homem destemido, daqueles de confiança absoluta do patrão, rígido com o pessoal sob o seu comando. Era um administrador (diziam-se capataz) da Fazenda. Pelo seu jeito rude de ser, a meninada o evitava. Acontece que num 1º de janeiro quando cheguei na venda do “seo” Antonio para pedir Boas Festas dei de cara com o valente Belmiro. Receoso, voz trêmula diante daquela figura rude, disparei, até a contragosto, o meu primeiro votos de Boas Festas. E o “seo” Belmiro se comoveu. Talvez, em tempo algum, nenhum outro menino ousasse saudá-lo daquela forma. Tremi do cabelo aos calos, mas, repentinamente, o homem se inclinou, passou as mãos sobre a minha cabeça, e me ofereceu o dinheiro que tinha na carteira. Era muito. Voltei correndo para casa. As boas festas daquele ano estavam garantidas. Satisfeito, mostrei o dinheiro para minha mãe, contei orgulhoso o meu ato de coragem, guardei a grana e fui correndo para um campinho de futebol. Mas, lá encontrei a meninada estarrecida. Diziam que a 100 metros dali havia acabado de acontecer um crime. Seis pessoas de uma mesma família cercaram um homem e o esquartejaram a faca. Receoso me aproximei dos curiosos naquela cena de sangue, e mesmo estando de bruço, reconheci a alguns passos que se tratava do “seo” Belmiro, aquele que me dera a melhor todas as Boas Festas. Não foi aquele o Feliz Ano Novo que eu lhe desejei. (lembranças da Infância) -
(jocafe)