Muito já se escreveu sobre o pensar do nosso povo. E sobre o caráter vago, fluido, indeterminado e misterioso dos habitantes deste pedaço dos Trópicos. Quando se espera que a resposta do homem das ruas a uma questão trivial seja um “sim”, o interlocutor se depara com um surpreendente “não”. Ou vice-versa. A troca de sinais e a recorrente falta de precisão nas afirmações – que embalam brasileiro no rótulo do “mais ou menos” – remetem para a antropológica análise de Darcy Ribeiro, ao lembrar que “essa massa de nativos, depois de viver por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade”, até hoje tenta consolidar a identidade étnico-nacional. E, na dura busca de seu destino, não se apega a nenhum passado. Arremata o celebrado autor de O Povo Brasileiro: “estamos abertos é para o futuro”.
No meio das análises a respeito da disputa de 3 outubro, o ensinamento do espirituoso Darcy, que na década de 1990 animou o Senado Federal com sua perspicácia, parece muito oportuno. O povo mostrou, mais uma vez, que o dito pode ser desdito, que sinalizações nem sempre apontam para a direção correta e verdades não passam de mera fantasia. O que mais chamava a atenção era a previsibilidade do pleito. Esta característica ficou mais acentuada agora do que em 2006, quando o favorito Lula disputou o 2º turno com Alckmin. Há menos de um mês a previsão de vitória da candidata Rousseff se fazia praticamente unânime entre especialistas e institutos de pesquisa. O que teria ocorrido para desmanchar a certeza? Razões começam a ser apontadas, mas a hipótese do eleitorado querendo protelar o desfecho para rever os horizontes do futuro parece razoável.
A crença de que o eleitor não aceita “jogo de cartas marcadas” – na esteira da historinha de Garrincha sobre a necessidade de combinar a jogada com os russos – é reforçada quando se consideram pelo menos seis fatores: a despolitização; a agenda polêmica; a auto-suficiência dos dirigentes petistas; a marola verde; a opinião pública; e a abstenção. De início, vale lembrar que o processo eleitoral é um continuum de movimentos, mensagens e atitudes que se conjuminam para formar um discurso captado pelos conjuntos eleitorais sob duas maneiras: a primeira é a estética da campanha, abrigando cores, símbolos, cenas da paisagem e comportamentos dos candidatos; a outra comporta as falas dos contendores. Vamos lá. Alguém sabe, nesse momento, distinguir propostas dos candidatos a não ser vagas lembranças sobre saúde, educação, transportes, segurança etc? Os mosaicos dos programas eleitorais dificultaram a percepção de diferenças. Debates monótonos e de pouca audiência foram avaliados a partir da performance de cada um. Identidades individuais sobrepujaram ideias. As mãos de Serra, batendo contra o peito, em reforço ao discurso do “eu, eu, eu vou fazer isso e aquilo”, ganharam tanta evidência quanto a dor nas pernas que afetou a locomoção da ex-ministra Dilma.
No campo das ideias, o realce foi para a questão do aborto, sobre a qual se desfechou um ataque viral nas redes sociais envolvendo a candidata governista. O tema da defesa da vida foi o que mais sensibilizou famílias e credos. Estabelecer nexo entre candidatos e valores, sob o argumento de que defendem posições contra o ser humano ou ferem tradições sagradas do povo, tem sido estratégia eficaz do marketing político. Ao longo dos anos, o PT recorreu à pautas polêmicas. E quando procura desfazer o elo que o conecta a conceitos que sofrem forte rejeição, acaba não alcançando bons resultados. Por isso, continua a trilhar na corda bamba, apesar de continuar a amealhar votos que o deixam no primeiro lugar do ranking.
A auto-suficiência petista atingiu o clímax. Nunca se exibiu tanta onipotência em campanha quanto neste primeiro turno.
Era de se esperar, portanto, que aglomerados urbanos, de voto racional, insatisfeitos com as bandas em litígio e atingidas por águas sujas (affaire Erenice), embarcassem na canoa verde, conferindo a Marina Silva o trono ético que aglutinou cerca de 20 milhões de votos. Nesse ponto, convém destacar o efeito da pedra jogada no meio do lago. Ondas foram se formando até às margens sociais, o que explica o engajamento de parcelas da emergente classe C na corrente de Marina. Tal fenômeno se tornou possível graças à ressonância da mídia. Os balões da opinião pública foram inflados e, mais uma vez, a tese de Lula – “nós não precisamos de formadores de opinião, porque nós somos a opinião pública”- foi desconstruída. O último curto-circuito foi a alta abstenção no Nordeste, onde o voto dilmista é denso. Atropelados por informações desencontradas (2 documentos, 1 documento) e com receio de errar o voto em seis candidatos, 24 milhões de eleitores preferiram não arriscar, contribuindo para levar o pleito ao 2º turno.
E assim, as lições do primeiro turno ensinam que, na história do voto, não há fonte mais poderosa que o povo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação