A poucos dias do pleito, salta à vista que o ideário na esfera da disputa presidencial ficou abaixo das expectativas, comprimido pela camisa de força imposta pelo modo de fazer campanha.
Mais uma vez a crônica policial se sobrepõe à crônica política, na evidência de que fortes camadas de lama cobrem o tecido institucional. Escancara-se a visão de um Estado que pouco avança na direção de costumes éticos e práticas morais. Tal sinalização se revela assustadora ao se imaginar, meses atrás, que o pleito deste ano seria o mais fértil e contributivo dos últimos tempos, porquanto propiciaria a aferição de nuances a respeito do futuro do Brasil por parte das propostas dos candidatos.
A saturação do discurso transparece, inicialmente, na tela da pasteurização doutrinária. Não se distingue, em alguns partidos, indicação que possa nem de leve identificá-los com as fontes em cujas águas beberam. A polarização entre duas grandes forças - o petismo e o tucanato - deveria servir de palanque para animado embate sobre os ideários que encarnam. Será que já não os representam? Ou será que usam motes de acordo com as conveniências? Se o PSDB nasceu agarrado à bandeira da social-democracia, que simbolizava o Estado de bem-estar social, é de perguntar se o conceito ainda vale e qual a extensão da liga que o conecta ao liberalismo. Quanto ao PT, embalado nas origens pelo lençol socialista, poderia explicar se ainda defende o controle social dos meios de produção ou se acredita na tese da classe operária ocupando o poder. O que tem a dizer sobre o modelo capitalista, com traços burocráticos, que opera e sobre pontos polêmicos que borram a sua imagem?
A falta de clareza sobre abordagens programáticas - pelo PT, principalmente - tem sido responsável por receios que impregnam considerável parcela do eleitorado. Pautas turvas estão a merecer esclarecimentos, tais como a questão do aborto, o controle dos meios de comunicação, a tributação de fortunas, a invasão de propriedades, a diminuição da jornada de trabalho e o apoio do Brasil a países de regime autoritário. Dessa agremiação se cobram uma linguagem menos dúbia e posicionamento equilibrado com foco na harmonia social. Causa temor quando, por intermédio de porta-vozes informais, manifesta desejo de ser o partido hegemônico, menosprezando parceiros. Afinal de contas, nenhum governante, de que legenda for, conseguirá alcançar sucesso sem o escudo da modelagem político-partidária em vigor. A ampliação da base governista foi estratégica para aumentar a visibilidade de Dilma Rousseff na mídia eleitoral, importante vetor de eficácia da campanha. Na véspera da liturgia das urnas, ante a perspectiva de vitória do governismo, as alianças parecem coisa menor. Espraia-se uma desconfiança sobre os parceiros ou se trata apenas de jogo de cena com vista à futura ocupação de espaços?
Os eventos abarcando a invasão de dados de contribuintes da Receita Federal e o tráfico de influência por familiares da ministra-chefe da Casa Civil que acabou saindo do governo colocam, mais uma vez, o modelo de governança no centro da mesa de debates. Interessante é anotar que a incandescência sempre emerge nos finais de campanha. (Quem não se lembra do caso dos aloprados em 2006?) O cerne da questão é o modus operandi da máquina.
Não é de hoje que se denuncia o uso de estruturas estatais para favorecer pessoas e prejudicar grupos. O imbróglio começa com a inserção de quadros indicados por entes partidários na administração (federal, estadual e municipal). A lógica imposta pela democracia representativa, sob um regime presidencialista, é a de divisão do poder pelas forças que o conquistaram. Tem sido assim aqui e alhures. Os desvios surgem quando os cargos são manipulados para robustecer de forma desabusada (e ilícita) os patrocinadores.
Mas um fato é inegável: o estatuto da reeleição tem corroborado a prática de manipulação do aparelho estatal. Candidatos à reeleição para o Executivo ou apoiados por governantes no cargo são considerados extensões do poder. Ora, “os donos dos feudos”, nomeados por critérios políticos, não se escusarão a ajudar quem os indicou. A Lei Eleitoral, por seu lado, impõe barreiras a tal apoio. O artigo 73 veda aos agentes públicos condutas que possam afetar a igualdade de oportunidades entre os contendores. Mas o repertório de proibições não consegue conter as malhas do poder invisível. O sentimento é de que a sociedade clama por inovação, verberando contra as correntes rebaixadoras, à semelhança de Nietzsche no cume do penhasco de Engadine, nos Alpes: “Vejo subir a preamar no niilismo.”
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação