Posso tomar banho de meia hora com o chuveiro aberto, não importa quanta água escorra sem necessidade e deixar todas as lâmpadas sempre acesas, mesmo quando há luz natural suficiente; afinal, sou eu que pago minhas contas. Você concorda? Claro que não, pois sabe que água tratada e energia elétrica são bens preciosos que devem ser usados com responsabilidade. É uma questão social. Quem defende a descriminalização do porte e até do tráfico de entorpecentes, vale-se do argumento de que a pessoa deve ser livre para usar droga porque está fazendo mal só a si mesma, que é problema dela; invoca até princípios constitucionais (liberdade, privacidade) para afirmar que o estado não deve interferir na vontade do indivíduo. Com todo respeito, penso que tal opinião decorre de um distanciamento da realidade. As coisas parecem menores quando as olhamos de longe. Por isso a Lua, vista daqui, tem meio metro de diâmetro; as estrelas são minúsculos pontos brilhantes.
O grande equívoco é pensar que o usuário de entorpecentes só prejudica a si mesmo. Pergunte aos pais e irmãos de um viciado ou dependente de drogas como é passar por isso. Sabe aquela coisa de o viciado subtrair objetos de valor de dentro de casa para vender a preço de banana e comprar droga? Não é invenção. Existe mais do que se imagina. Sabe o que é uma família fragmentar-se, desestruturar-se, ruir porque um ou mais de seus membros caiu no mundo das drogas? Não é conto da carochinha: é real e muito comum. Sabe o que são pais no ponto de não saberem mais o que fazer para ajudarem um filho dependente? Há um monte por aí. Converse com alguns deles, pergunte como se sentem. Você descobrirá o que é desespero, dor, desalento, sensação de impotência. Sabe aquele rapaz que é boa gente, mas que, por conta do efeito de cocaína, crack, LSD, etc., mete uma arma de fogo na sua cara e manda entregar tudo se não quiser morrer? A quem já foi vítima em assaltos assim, pergunte se a droga faz mal só ao usuário. Trabalhei num caso de latrocínio em que os assaltantes não queriam matar a vítima, mas o que portava um revólver acabou atirando porque estava drogado e perdeu o controle. Neste episódio, imagine quantas pessoas foram prejudicadas: a vítima, que morreu, seus familiares e amigos, os pais e familiares dos próprios autores do crime. Os dedos de duas mãos e dois pés são insuficientes para contar. Tudo tem um custo e alguém sempre paga. Vultosa verba pública, que poderia ser destinada a outros fins, é gasta com internação e tratamento de dependentes que não podem pagar clínicas particulares. Sai de graça para eles, mas não para o contribuinte. Em suma: o efeito nefasto das drogas vai muito além do usuário. Este entra no inferno e arrasta consigo uma multidão.
Imagine o quanto o mundo seria melhor se ninguém usasse droga. Parece utópico, mas pense. A lei de tóxicos é uma espécie de freio, é um meio de tentar impedir o indivíduo de fazer o que ele deveria abster-se por consciência própria. Mas a lei é apenas um monte de palavras que não vai obstá-lo de envolver-se com drogas se você quiser; a lei só diz qual a punição lhe deve ser aplicada se você comete crime. Mais forte do que a lei deveria ser a consciência de cada um. Se cada indivíduo, por questão de princípios, zelasse pela própria saúde física e mental, a lei seria dispensável. Princípios corretos levam a meios legais e morais para atingir fins da mesma natureza. O baixo nível de consciência e de responsabilidade social faz da lei penal um mal necessário. É a saúde pública que está em jogo.
Criar coragem, entrar em transe, sair do próprio corpo, flutuar, viajar em outra dimensão, fugir da realidade, sei lá qual é o objetivo de quem usa substância entorpecente, mas não vejo onde está o “grande barato”. É falta de juízo, de amor-próprio, de imaginação e custa caro. O bom da vida pode ser encontrado em uma multiplicidade de coisas sadias; se nos ocupamos com elas, não sobra tempo para drogas. A pessoa sã deseja a lucidez mesmo em momentos de sofrimento, pois quer usar a própria força para superá-lo. Portanto, o uso de drogas não é problema só do indivíduo. Viver é muito mais do que pensar somente em si. A propósito do que eu disse no início do texto, no banho abro o chuveiro no máximo dois minutos e não deixo lâmpadas acesas sem necessidade. Afinal, sou eu que pago minhas contas.
*Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça, autor do livro “Pensando na Vida” paulopereiracosta@uol.com.br