Naquela tarde, ele sentiu vontade de surpreendê-la. Esticou o peso dos oitenta anos e conseguiu furtar-se aos espinhos e à integridade das pétalas, para fazer o que havia esquecido pela artrose dos gestos e da vontade: roubar uma rosa e presentear sua companheira de quase sessenta anos, desenganada pelos médicos e há muito desencantada com a vida. Estavam os dois a andar na calçada da casa num ato de rebeldia e independência. Ela, consumida por uma trombose que reduzia os movimentos, convidou-o para um passeio, não propriamente um passeio, como em outros tempos, a cavalo ou de carro, do campo às cidades, mas meia dúzia de passos fora dos muros da casa, onde ainda recebiam os filhos e netos.
Como ele poderia recusar o chamado, embora não sentisse desejo de mover uma palha? Estava bem, seu diabetes controlado, sua pressão aqui e acolá aos pulos, nada, todavia, que comprometesse o carteado das terças e quintas, e a roda de chorinho às sextas, com ou sem ela, mais sem do que com, e não só agora, mas desde o tempo em que ela, prenunciando a fatalidade de uma doença cruel, abdicara da vida para ficar a remoer, com dentes postiços e gengivas doentes, a amargura de lembranças e porta-retratos que sorriam parentes já falecidos ou de semblantes irreconhecíveis. Uma vez ou outra, expunha o borderô com as duplicatas das traições do marido, um homem impossível e insaciável desde antes de se casarem. Ele não mais se zangava com as ralhas e os protestos do título de fidelidade, atribuindo tudo à esclerose da companheira; à esclerose do sentimento, ela retrucava.
Os olhos dela apenas se abriam com aquele especial brilho que o aprisionara na juventude, quando viam chegar Maria Luíza, sua terceira neta num universo de onze, mais os sete filhos, todos os sete vivos e já meio esgotados pela idade, um a beirar os sessenta e cinco, até mais mofino que o pai. A neta era uma festa e revelava um carinho da avó subtraído à criação dos filhos e de seus filhos. Sempre fora seletiva nos amores. Amara mais ao pai que a mãe, não gostava da avó e, enfim, desejou um só homem, embora fosse pretendida por vários. Casara-se com ele contra todas as previsões e conselhos. Ela católica; ele, ateu. Ela, dama; ele, plebeu. Ela solteira; ele casado. E, principalmente, ela rica e de família, ele, um camponês sem sobrenome válido. A predileção foi herdada da mãe como o hábito da soberba lhe veio do pai. Ela o quis desde a primeira vez que o viu contra os rigores das leis, as ameaças paternas, o claro repúdio da mãe e a resistência do próprio escolhido. Ele e ninguém mais agora ou em qualquer tempo, ela se disse e a quem quisesse ouvir.
Envolveu-o em seus laços de aranha, dominou seus medos e fugiram para outra cidade com as fortunas do amor e a roupa do corpo. Enfrentaram preconceitos e deboches, tendo ela ainda de conciliar o tempo da maternidade com o tempo da lida da casa e a colheita no campo. Sempre firme e resoluta, tornou-se turrona e implacável com o marido e os filhos. Nenhum erro era perdoado, nenhum descaso esquecido. Impunha-se contra todos os argumentos, discriminava sem subterfúgios e a concessão que admitia era no máximo a indiferença. Aquela que decretou ao marido, quando ele a deixou prestes a ganhar o sétimo filho, filha, de fato, para ir à vagabundagem sob o pretexto de um negócio na cidade.
Embora não fosse de beijar ou fazer cafunés, era de todos sabido que Onofre, seu segundo filho, era o preferido, como, na expressão do desdém e da cobrança, Amaralinda, sua única filha, era a renegada. Por uma dessas conspirações da natureza ou destino, foi a filha da renegada que revelou o lado maternal e carinhoso da avó. Melhorados de vida, já não mais ia à lavoura nem tinha de ater-se aos detalhes da casa, ficando a olhar os rostos do passado pendurados na parede, enquanto arrumava cortinas invisíveis e costurava véus de presságios dentro da catarata que lhe cerrava os dois olhos. Arrastava-se pela casa a fazer reclamações com os empregados indolentes, com a enfermeira descuidada e com as traças que teimavam em tomar-lhe aos furos o casaco de lã que jamais usara. A neta lhe mudava as feições, impingia, era quase assim, um sorriso e ela parecia de novo criança a inventar histórias de bonecas, bruxas e príncipes.
Àquela tarde, estavam só os dois velhos e a vastidão da casa. Ela sentiu um súbito desejo de andar lá fora sem enfermeira ou ajudante, apenas na companhia de seu amor sexagenário, de sua paixão esquecida e, sabe-se lá por quê, de repente lembrada. O velho acedeu sem vontade, má ou boa, pelo simples e inexplicável desejo de não contrariar. E assim foram os dois aos seus passos mundo afora. Quando ele viu a roseira esquivar-se das grades do vizinho, foi arremessado ao ato da sedução de furtar-lhe a rosa como fosse para retribuir o convite ou simplesmente pelo impulso da vontade, a imaginar-se trinta anos mais moço e, mais uma vez, galanteador. Ela se derreteu em imprevisível alegria e chegou a beijar-lhe as bochechas tingidas de tempo, pele e pelos. Voltaram para casa de mãos dadas dentro de um silêncio que parecia unir-lhes as almas, serenando todas as diferenças do convívio. Há coisas indizíveis, puro sentimento ou emoção, que superam os desencontros da vida, a falibilidade corpórea da história humana, da aventura de um homem e uma mulher, mas que, sem necessidade ou condições de palavras, parecem revelar uma extraordinária unidade de dois corpos e dois espíritos eternamente ligados a serem um apenas ao final. Sequer foram à mesa e, assim como estavam, deitaram-se e, como dois irmãos, dormiram. No dia seguinte, ela acordou; ele, não.
Naquele dia, ela não quis comer ou tomar remédio, a água desceu-lhe à força. Enlutou-se sem lágrima dentro de um silêncio de morte como se com ela, sua companheira de velhice, surdamente reclamasse. E foi desse diálogo inaudível e estranho que lhe ocorreu a ideia de plantar a rosa que ganhara. Escolheu o vaso mais bonito e, desde então, passou a aguá-la, acompanhando o desfazimento das pétalas, a solidão do talo, o surgimento do broto até que nova rosa se abriu com vida e cheiro. Ficava lá, sentada em sua cadeira de balanço, a olhá-la todos os dias o dia todo como se a vigília fosse a forma de mantê-la, ela nem tanto, a rosa, mais viva.
Era mais provável que estivesse a relembrar sua vida sem nenhuma tristeza ou mágoa, sem alegria tampouco, impassível e circunspecta, apenas a ver a vida projetar-se no ciclo vegetal da existência. Quem lesse sentimentos identificaria o riso profundo da redescoberta do afeto e da memória mais viva dos últimos instantes que passaram juntos, ela e ele, numa restauração de cumplicidade, noutra promessa de reencontro. Foi assim, neste estado de contemplação e ternura, que, ao lado da rosa tão vigiada, mas, outra vez, murcha, partiu uma semana depois.
Maria Luíza foi a primeira a vê-la só em corpo. A alma estava a colher flores no céu juntos dos seus, junto do seu amor.
*José Adércio Leite Sampaio é jurista