O mantra volta a ser entoado: a “mãe de todas as reformas” será a bola da vez no jogo político de 2011, que terá no meio do campo o goleador Lula, com prestígio e tempo disponível de um ex-presidente da República para conseguir o gol que tanto se persegue. Dá para apostar na promessa? Em se tratando de reforma política, a distância entre discurso e prática equivale à que separa o Polo Norte do Polo Sul. Entre as razões para a descrença, aliás, as mesmas que justificam a tênue viabilidade de ampla reforma tributária, apontam-se as perdas dos atores envolvidos nos lances. A reforma não é feita porque ninguém quer perder. E por onde deve começar uma reforma política? Se for pela via do sistema de voto, a complicação comporta desde a definição de sua tipologia - distrital, puro ou misto - até o estatuto da cláusula de barreira, dique para sustar a avalanche de siglas. Alterar apenas o item que recebe maior consenso entre os atores, como o financiamento público de campanha, é um risco, eis que pode gerar polêmica e se transformar em bumerangue, ante a possibilidade de uma enxurrada de críticas sobre interesses específicos dos políticos.
Por que não começar a desembrulhar o pacote pela régua do equilíbrio entre os Poderes? Esta abordagem, apesar de não atrelada ao painel reformista, dele poderá fazer parte sob o entendimento de que parcela ponderável das mazelas no entorno da política se deve à interferência maléfica de um Poder sobre o outro, particularmente a invasão do Executivo sobre o terreno legislativo. Nesse caso, trata-se de administrar a índole avassaladora do presidencialismo, tornando-o menos voluntarista no plano das ações governamentais e ajustando-o ao molde concebido por Montesquieu na tripartição dos Poderes. A tese que se pretende esboçar é a de que a correção de rumos de nossa democracia representativa, antes de nova configuração dos organismos que a definem e a compõem - organização e funcionamento de partidos, escolha de candidatos, sistemas de voto, processo eleitoral, conduta dos agentes públicos em campanhas, etc. -, há de considerar um alinhamento no plano funcional dos Poderes. Se a relação entre eles tem rompido o fio constitucional da harmonia, independência e autonomia, por conta da apropriação de funções legislativas pelo Executivo, qualquer projeto de reforma política será capenga se não considerar tal fato.
De pronto, a pergunta emerge: o que e como fazer para amainar a fome pantagruélica do nosso presidencialismo? O primeiro passo foi dado pela interpretação sistêmica do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, à questão das medidas provisórias. Nem todas trancam a pauta. Outra orientação: ajustar os buracos do cinturão econômico dos entes federativos, tornando-o mais compatível com suas demandas. O fator econômico ordena a disposição no tabuleiro da política. Quem tem mais cacife fala mais grosso e detém maior poder de barganha. Vamos ao dado fundamental: a União fica com 60% dos impostos arrecadados e apenas 16% vão para os municípios, enquanto os Estados embolsam 24%. A inferência é óbvia: se não houver repartição da fatia do bolo tributário, o Executivo continuará a encurtar e alongar (de acordo com suas conveniências) o cabresto dos “animais políticos” que procuram sua roça. A reforma fiscal apresenta-se como a primeira barreira para deter a força descomunal do presidencialismo. Se municípios e Estados forem menos dependentes do poder central, terão melhores condições de se livrar do grilhão do fisiologismo. Só assim o Poder Legislativo não seria tão refém do Executivo e este, por sua vez, atenuaria suas funções legislativas.
Tal modelagem, para ser viável, deverá estar à margem da reforma tributária, que exige maior complexidade. A redistribuição do bolo, atendendo a critérios de responsabilidade, encargos, justiça e equidade, contaria com ampla cobertura social e significativo apoio político. Neste ponto aparece mais uma resposta ao desafio de arrefecer o toque imperial da orquestra presidencialista: a organicidade social. Entidades multiplicam-se por todos os lados, a denotar a forte capacidade de organização da sociedade. A miríade de associações, sindicatos, federações e movimentos aponta para o desenvolvimento de novos polos de poder, na esteira da democracia participativa, em ciclo de expansão. Vale lembrar que o Projeto Ficha Limpa é típica manifestação do clamor coletivo. Pois bem, as 300 mil entidades organizadas no País deverão assumir papel de maior relevo nos horizontes do amanhã. Mais um sinal nessa direção é dado pelo índice que mostra a intenção dos cidadãos de participar do processo eleitoral mesmo se o voto fosse facultativo: 72% do eleitorado, segundo as pesquisas, compareceria às urnas. Há nessa disposição um reconhecimento das políticas públicas bem-sucedidas.
Fica patente a ilação: um bom exercício para reformar a política começa com a redução da força do superpresidencialismo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação