“Bebida é água! Comida é pasto!/ Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?...” (“Comida”, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto). A presidenta eleita diz que pretende erradicar a miséria no Brasil. Tem o meu apoio. Mas duvido que do governo saia algum programa apto a isso. A classe política, notadamente a que está no poder, não quer acabar com a pobreza. A grande quantidade de miseráveis é um trunfo eleitoreiro, é massa de manobra. A eleição presidencial foi decidida com o voto da pobreza extrema, temerosa de que o outro candidato acabasse com a bolsa-família. Isso funciona infalivelmente neste Brasil macunaímico, com um contingente enorme de eleitores de baixíssimo grau de exigência, cuja qualificação se restringe à força braçal. Para vencer a miséria é preciso combater as suas causas, o que requer várias medidas. Uma delas é levar desenvolvimento para as regiões do semiárido, mas as oligarquias do norte-nordeste não querem isso, pois temem perder seus votos de cabresto. “Eu lhe dou de comer e alguma coisinha mais, mas nada que o torne independente de mim; você não pode ser livre, senão eu fico sem garantia do seu voto”, pensam os oligarcas em relação ao seu povo, que por sua vez acha que assim está bom. É como canta Zé Ramalho: “vida de gado, povo marcado, povo feliz”.
O atual presidente se gaba de ter criado quinze milhões de novos empregos. É até crível que o nível de emprego possa ter subido, mas o Planalto nada tem a ver com isso. O governo não gera empregos, a não ser cargos de confiança para amigos e aliados. E nisso Lula é insuperável. Haja grana para pagar companheiros, camaradas, sei lá o quê mais, vivendo à custa do contribuinte, sem serventia nenhuma para o país! Quem cria empregos com carteira assinada é o setor privado, é gente que empreende, que arrisca, a despeito das mordidas cada vez maiores do Estado insaciável, da burocracia. Se o governo põe dinheiro em obras, é dinheiro nosso. O Estado não produz riqueza. Só gasta. E mal. Obra pública com superfaturamento é o que não falta.
Só sai da miséria a pessoa que entender que isso depende muito mais dela do que do governo e dos outros. Quem se acomoda não sai do lugar. O indivíduo, até por uma questão de responsabilidade social, de dignidade, tem de romper barreiras, tem de buscar, ir atrás ao invés de ficar sentado com a mão estendida. Não é fácil conseguir sozinho, mas eventual ajuda só pode ser um complemento do seu próprio esforço. Quem está a fim encontra ajuda. Não se vence a miséria de um povo resignado, que não quer sair dela, que se contenta em ter comida, em viver da piedade alheia. Os EUA são uma potência por causa da luta histórica do seu povo. O explorado precisa querer livrar-se do domínio do explorador, andar com as próprias pernas. O desenvolvimento de uma nação se assenta na força do povo, não na força do governo, e um povo só é forte se cada indivíduo se empenha em vencer a inércia e a ignorância, qualificar-se, ser útil, participar. O que tira o indivíduo da pobreza é a adequada utilização do seu poder pessoal, não o poder público.
Além disso, a miséria no Brasil não é só material. Miséria é carência. O Brasil tem carência moral. As vilanias praticadas nas entranhas do poder refletem a moral da sociedade da qual saem os políticos vilões. Por que se vende tanto entorpecente? Porque muita gente compra. E não é só coitado que consome. A droga infiltra-se para valer no meio mais abastado, no mundo de mauricinhos e patricinhas com boas condições materiais. Quem luta contra o tráfico rema contra a maré, pois tem contra si a força que deveria ter a favor. Nas minhas caminhadas, vejo carros estacionados em cima da calçada, bloqueando a passagem dos pedestres. Dia desses, na rodovia, de um carro novo que ia à minha frente foi jogado um coco; o sujeito tomou a água e jogou o coco pela janela. É o bolso cheio dominado pela cultura vazia. É a miséria mental. Quando veio a lume a existência do mensalão, no primeiro mandato do atual presidente, o jurista Hélio Bicudo, um dos fundadores do PT, afirmou que Lula era centralizador e estava por dentro de tudo. Era caso para “impeachment” do presidente, mas ainda falta ao Brasil a seriedade necessária para agir de acordo com o senso de certo e errado, legal e ilegal. A conveniência ainda é a energia que move a grande maioria da classe política, dominada pela miséria moral.
Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça e autor do livro “Pensando na Vida”, paulopereiracosta@uol.com.br